sexta-feira, 20 setembro, 2024
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Cobrança indevida; artigo do professor Ivanor Luiz Guarnieri

Nosso personagem sentiu naquele dia algo estranho em sua mente. O passado de uma vida desperdiçada tocava a campainha. A fatura era alta, décadas de trabalho infrutífero realizado com zelo, na vã tentativa de acumular riqueza. A riqueza não veio, veio o cansaço da existência tormentosa gasta em dias e noites de desassossego.

Agora, olhando para a parte do corpo que precisava ser amputada, nosso herói sentiu o amargo arrependimento da ganância. Mais forte que a dor da perna gangrenada e pútrida era a dor da alma desalentada. A desatenção para com os primeiros sinais da infecção resultou pouco a pouco no quadro horrível e malcheiroso em que se encontrava.  Para comprar antibióticos era preciso receita médica. A receita dependia de uma consulta que demoraria. A consulta particular exigia dinheiro e nosso personagem demorou muito para decidir entre a bolsa e a vida. O perigo não parecia ser tão grande, mas era.

Pensou que ficar velho pode não ser um problema, mas tinha certeza que quase nunca é uma solução. Ao menos não era solução no caso dele. Na vida aprendeu apenas a fazer coisas. Fez muitas coisas para os outros. Estar empregado ou abrir um pequeno negócio era seu orgulho e quando perguntavam sobre sua formação respondia secamente: “Faculdade da Vida”. Nessa resposta estavam escondidas duas coisas: primeiro, a frustração por não ter estudado quando podia; segundo, o orgulho de ter vivido sem a necessidade desse estudo. É bem verdade que jamais iria saber como seria sua vida se tivesse estudado. Para isso, seria necessário viver tudo de novo, só que num novo formato de vida, o que não era o caso.

Esse homem tinha um traço de personalidade facilmente encontrável naqueles que somam ignorância com prepotência. Ele vivia a dar lições nos outros, não poupava crítica aos que agiam diferente dele próprio. Para ele o paraíso seria um lugar onde as pessoas seriam como ele queria que elas fossem, nem mais, nem menos. Os problemas que tinha com o fisco era culpa do governo. Sonegar impostos era justificado, pois, segundo pensava, o governo não sabe administrar o dinheiro público. A multa por excesso de velocidade foi causada pelo policial que estava pouco visível depois de uma decida acentuada.

Mas agora, que o fim estava ali, tudo isso é vão. A existência foi construída assim e retroceder não era uma possibilidade.

Alguém sentou do seu lado, na varanda. Com paciência ouvia seus queixumes ao longo dos anos. Essa mulher o amava, no começo. Depois foi se acostumando. A covardia ou o medo a impediu de afastar-se dele. Ela pensava“Como irei criar as crianças? ”, pensava.

Num momento de coragem a mulher disse ao marido: “Pense nas coisas boas que fizestes. Acaso não criastes teus filhos? Estão todos formados, embora longe”. E seguiu catando exemplos de coisas boas que ele fez ao longo do tempo.

Foi um alento. Era como se ela tivesse conseguido colocar a mente dele em outra sintonia. Num átimo ele passou a ouvir a doce música do sucesso de seus empreendimentos:  A casa, a loja, a conta bancária, a ajuda que ele nunca se negou a quem estava com dificuldades. Isso somado aos  anos de fé e leitura da Bíblia. De repente, o ar da tarde ficou mais leve e o céu mais bonito.

Prof. Dr. Ivanor Luiz Guarnieri (UNIR)

O desânimo foi embora quando ele percebeu que trinta e seis anos antes havia conseguido casar com a pessoa que realmente o amava. Era hora de conquista-la novamente.

Depois de voltar a tomar os remédios corretamente, passaram boas horas de contentamento. Quando morreu, trazia um leve sorriso. Teria dito: ‘estou satisfeito’. O pedido que fez para a família era que não olhassem o que sofreram. Não adianta cobrar do passado. O passado serve para mostrar o que não se deve fazer, não para ser cobrado.




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