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Artigo: três personagens e um russo

Atordoado pelo trabalho, num lugar onde aprendera que sua profissão é obedecer, nosso personagem seguia pensativo sobre si mesmo. Nem sempre é fácil, mas é necessário domar o sono da noite para melhor aproveitar a vida. Os livros, os eretos livros colocados em disputa nas prateleiras, como homens em congresso de inteligência, instruem, mas também perturbam, vislumbrando realidades outras.

‘“Uma crise”, eis um conto que pode ter muito a ver comigo’, pensou nosso prestativo homem.  Ora, o ser humano, antes de ser um animal racional é um animal em crise. O conto de Tchekhov é simplesmente difícil.  Uma história de rapazes que vão à rua de prostitutas, na qual se enfileiram casas, muito iguais, dentro criaturinhas meigas, dispostas, em troca de alguns rubros. Nosso personagem olha o personagem de Tchekhov, aquele que sentiu nojo da situação, que ficou indignado com a surra dada em uma das senhoras daquela zona, e que, segundo o narrador de Tchekhov  protestava. ‘Desejo ir-me’, e assim o fez, aquele, o russo.

Nosso personagem olhava atento o movimento do outro, que a certa altura lembrou-se de um ditado russo: bom é onde não estamos. Na noite adentro soltou o livro. ‘Esses russos são mestres de humanidade’. Depois dessa ideia lembrou-se de sua vida pacata e nervosa. Quantas vezes mudamos pensando em melhorar. ‘Estou no inferno, preciso ir’, mas aonde ia era tão quente quanto de onde vinha, queimava-se mais uma vez.

‘Porque os outros não são como quero?’ ‘Poderiam importunar-me menos, e agradar-me’. ‘Não precisa muito, basta deixar-me em tranquilidade’. Foi pensando, as horas escorrendo. O torpor do sono abraçou seu corpo, teve de entregar-se. Quando num depois o sol feriu seus olhos, espantando parcialmente o dormir, o que lhe veio à mente foi uma vaga mistura de Tchekhov e trabalhos. Naquele meio termo entre dormindo/acordado, veio-lhe à mente o viver de alguém diferente dele próprio. Uma personagem que nosso cansado trabalhador criaria para safar-se das armadilhas. ‘Sim, que boa ideia. Criarei uma personagem com características muito diferentes das minhas. Desse modo, quando tiver dúvida sobre como proceder, chamo o outro que vive em imaginação e perscruto o que ele faria’. Nosso laborioso homem tornou-se escritor. Mas agora é coisa fina, pois que escrever está para além do esforço físico, lapida a alma.

Palpitando forte o coração pelo achado da descoberta; igualmente pelo adiantado da hora, pressentiu que se atrasaria novamente. Sobre ele os olhares dos demais da repartição, em tom de cobrança e com brilho de quem se colocava como superior. Cada um parecia dizer: ‘Vede como seu melhor que você, Atrasado. Vede como cumpro meu dever e você não tão bem, Atrasado’. “Esses atrasos não serão mais tolerados, não mais”, disse-lhe a Superintendência Mor, mas que ao mesmo tempo temia a fuga de nosso personagem. Dependia do trabalho dele, embora devesse sempre cuidar por enquadrá-lo no esquema do escritório.

Do dia suarento sobrou apenas o cansaço e a indignação das ofensas, ambos repousados no travesseiro consolador. ‘Que faria minha personagem nas situações que passei?’ Desenhada como uma mulher humilde e astuta, ela dizia: ‘Cuidado, só isso, cuidado’. ‘Você não pode mudar o comportamento dos outros, nem suas ideias, corrija os seus, não para submeter-se, isso é humilhante, mas para humildemente diferenciar-se’.

O jornal informava contratação de contabilistas, advogados e auxiliares. Era em outro lugar, bem próximo dali, mas muito distante do modelo de onde trabalhava.

Ivanor-ArtigosPreparou suas credenciais, consegui uma entrevista. Temeroso de que fosse descoberto, pressentiu que seria desagradável se os outros soubessem que pretendia ir-se para outro trabalho. “Que faz aqui, perguntou-lhe um amigo”. Nosso homem nada respondeu, mas pensou ‘Nada, nada. Deixe-me fofoqueiro. Irá espalhar ao mundo o que faço’.

Enfim mudou. O primeiro dia parecia como outro qualquer. ‘Será que nada muda meu Deus!’ Logo percebeu estar na mesma condição humana de antes, ou aquém dela. Sentiu saudade de onde estava só não podia mais voltar. Lembrou-se dos russos: “bom é onde não estamos” ou mesmo onde já estivemos.





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