O anúncio de que um parente chamado Simplorius visitaria a família deu medo no dono da casa. Contemos alguns momentos dessa história.
O telefone tocou; era ele, avisando que já estava na rodoviária. Com tudo arrumado, o dono da casa, que também era dono do carro, pegou este último e foi buscar o parente Simplorius. No caminho chuva fina, para-brisa embaçado, semáforo piscando. “Maldita violência, agora essa, semáforo livre, mas não muito, pois parar nas esquinas é risco certo de assalto” pensou.
– E então Simplorius, como foi a viagem?
– Bem! Quer dizer, mais ou menos. Em certos trechos mal.
– Entendi.
– E a Tia, está bem?
– A mãe está bem. Não muito, afinal. Ela casou com um homem meio chato, segundo os padrões a que ela estava acostumada com meu pai.
– Ah, é?! Opa! Chegamos!
– Que bom. E a prima tá boa?
– Você já vai ver, Simplorius.
Na entrada, sala de estar, TV ligada, crianças acordadas ainda. Mesa posta. Quarto arrumado para as malas.
No terceiro dia da visita, a pergunta incômoda e a falta de coragem para fazê-la. Que dia Simplorius iria embora? Não faltavam indiretas, perguntas vagas feitas pelo dono da casa sobre seus planos futuros ou a respeito do que faria dali alguns dias. Simplorius nada dizia, tergiversava, pigarreava e se derretia em elogios.
Uma boca a mais na mesa não era o caso. Uma boca a mais na mesa e que dizia coisas de modo muito franco era problema.
– Sou fã do Bial, disse o dono da casa. Esse é o Cara. Olha que programa legal. Cê gosta Simplorius? Já assistiu o programa “Na moral”?
– Ah sim, já vi, conheço. É da Globo né?
– Sim. Olha que bacana. É isso mesmo, o brasileiro fica reclamando dos políticos, mas olha aí, gente furando fila, buzinando perto de hospital, tentando tirar proveito de tudo. Olha o que o programa mostrou. Pessoas que acharam R$ 100,00 no chão e nem todas devolveram o dinheiro para o dono. Tá aí a prova da desonestidade nossa. Você não acha, Simplorius?.
– Acho que talvez. Talvez não. A desonestidade não é nossa. Ao menos não me incluo nessa. Depois não sei se tal armação teatralizada feita pela TV prova alguma coisa acerca do caráter do brasileiro. Até tô admirado de algumas pessoas terem devolvido os R$ 100,00. Você devolveria? Claro, você eu sei que é honesto, mas qual o grande problema se alguns embolsaram um dinheiro achado limpinho no chão. Deveriam devolver, mas quem sou eu para julgar. Só o Bial pode julgar. Claro, ele não só julgou as pessoas, ali, apontando o erro, como estendeu a culpa para o povo brasileiro inteiro. Ué, esse programa é reprise?
– Não Simplorius, é que eu salvei e estou estudando para apresentar como trabalho acadêmico. Você sabe, a gente precisa estudar; sou aluno na universidade.
– Que bom é estudar. Mas não é melhor procurar aprender primeiro nos livros? Digo assim, o que você aprende com esse programa?
– É que é mais fácil. A gente põe a gravação para rodar. A turma e a professora assistem. Daí a gente faz algumas perguntas bem polêmicas para debater. Debater é muito bom, passa o tempo que a gente nem vê. Pronto, tá apresentado o trabalho, valendo nota. Dos 50 minutos que temos que preencher dizendo alguma coisa que impressione a professora, pelo menos uns 15 vou 20 é o programa do Bial. Os outros a gente intercala com algumas falas e no final as perguntas.
– Mas o nome disso não é trapaça?
– Não! Que é isso Simplicius. Olhe pelo lado prático das coisas. Para se dar bem a gente não precisa se matar estudando, basta ser esperto: para passar no vestibular, para ganhar nota, para passar de ano, para se formar e ter o canudo. Cara, no Brasil o que vale é o diploma.
– Mas quem disse que você é esperto?
O dono da casa, que era o dono do carro, e também o dono da razão em seus domínios, foi logo inventando uma desculpa para desalojar Simplicius do lugar incômodo que ocupava. Inventou uma viagem com a família, pediu desculpas ao primo e mandou este de volta.
Simplicius odiava esse nome, mas carregava-o sem reclamar; para não magoar a mãe que o havia escolhido. Simplicius tinha nas ações e, principalmente, nas palavras um jeito simplíssimo de ver e dizer coisas. Somado a isso, também a falta de tato para a vida em sociedade. Em sociedade a regra é demonstrar honestidade mesmo que aparente; isso colocava Simplicius seguidamente em apuros.
Outro dia, quem sabe, conto mais desse personagem que de simplório nada tinha e serve bem ao propósito de mostrar reflexos da sociedade no espelho de certa forma literária, ou quase. Bem, não é aqui literatura. Mas quem sabe daqui algum tempo o escrevinhador treinando, lendo os russos, melhores o jeito de contar as aventuras de Simplicius.