He Jiankui parecia nervoso.
Na época, ele era um pesquisador desconhecido que trabalhava na Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, em Shenzhen, na China.
Mas vinha se dedicando a um projeto ultrassecreto nos últimos dois anos — e estava prestes a subir ao palco da Cúpula Internacional sobre Edição do Genoma Humano para anunciar seus resultados.
Havia um burburinho generalizado de expectativa no ar. A plateia olhava ansiosamente. Algumas pessoas começaram a filmar com o celular.
Ele havia feito os primeiros bebês geneticamente modificados da história da humanidade. Após 3,7 bilhões de anos de evolução contínua e sem interferências pela seleção natural, uma forma de vida manipulou com as próprias mãos a biologia inata.
O resultado foram gêmeas que nasceram com cópias alteradas de um gene conhecido como CCR5, que o cientista esperava que as tornassem imunes ao HIV, vírus causador da Aids.
Mas as coisas não eram o que pareciam.
“Fiquei meio que seduzido nos primeiros cinco ou seis minutos, ele parecia muito sincero”, diz Hank Greely, professor de direito da Universidade de Stanford, nos EUA, e especialista em ética médica, que assistiu à conferência ao vivo pela internet em novembro de 2018.
“Mas, à medida que ele prosseguia, fiquei cada vez mais desconfiado.”
Uma invenção genética
Nos anos que se seguiram, ficou claro que o projeto de He não era tão inocente quanto poderia parecer.
Ele havia infringido leis, falsificado documentos, enganado os pais dos bebês a respeito dos riscos e não havia feito os testes de segurança adequados.
Todo o processo deixou vários especialistas horrorizados — foi descrito como “monstruoso”, “amador” e “profundamente perturbador” —, e o responsável agora está na prisão.
No entanto, o maior revés sem dúvida neste caso foram os erros. No fim das contas, as gêmeas, Lulu e Nana, não foram agraciadas com genes perfeitamente editados.
Não só não são necessariamente imunes ao HIV, como também foram acidentalmente dotadas de versões do CCR5 inteiramente inventadas — que provavelmente não existem em nenhum outro genoma humano do planeta.
E essas mudanças são hereditárias — podem ser transmitidas a seus filhos, netos, e assim por diante.
Na verdade, não faltam surpresas nessa área.
De coelhos geneticamente modificados para serem mais magros que inexplicavelmente acabaram com línguas muito mais longas, a bovinos com gene editado para não terem chifres que foram inadvertidamente dotados de um longo trecho de DNA bacteriano em seus genomas (incluindo, ainda por cima, alguns genes que conferem resistência a antibióticos) — a história está repleta de erros e mal-entendidos.
Mais recentemente, pesquisadores do Francis Crick Institute, em Londres, alertaram que editar a genética de embriões humanos pode levar a consequências indesejadas.
Ao analisar dados de experimentos anteriores, eles descobriram que aproximadamente 16% deles apresentavam mutações acidentais que não teriam sido detectadas por meio de testes padrão.
Por que esses erros são tão comuns? Eles podem ser superados? E como podem afetar as futuras gerações?
Pode parecer um problema para o futuro. Afinal, He foi amplamente condenado e bebês geneticamente projetados são ilegais em muitos países — pelo menos por enquanto.
Por anos, Lulu, Nana e um misterioso terceiro bebê — cuja existência só foi confirmada durante o julgamento do cientista — foram as únicas pessoas com genes editados no planeta. Mas isso pode estar prestes a mudar.
Entrou em cena a edição de “células somáticas”, uma nova técnica que está sendo desenvolvida atualmente para tratar uma série de doenças devastadoras, desde obscuros distúrbios metabólicos até a principal causa da cegueira infantil.
A tecnologia é vista como um grande avanço no tratamento de alguns dos transtornos hereditários mais intratáveis, assim como de doenças comuns, como o câncer.
“No conjunto global das terapias Crispr [edição de genes], a edição do genoma de células somáticas vai representar uma fração importante”, diz Krishanu Saha, bioengenheiro da Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA, que atualmente faz parte de um consórcio que investiga a segurança da técnica.
“Quero dizer, este certamente é o caso agora, se você olhar para onde os testes estão, onde os investimentos estão.”
Funciona assim. Em vez de alterar o genoma de uma pessoa enquanto ela é um óvulo fertilizado ou embrião em uma placa de Petri, esse método visa alterar células comuns, como aquelas de órgãos específicos, como o olho.
Isso significa que as mudanças não devem ser herdadas pela próxima geração — mas, como acontece com toda edição de genes, não é tão simples.
“Digamos que estejamos injetando um editor de genoma no cérebro que tem como alvo os neurônios do hipocampo”, diz Saha.
“Como podemos nos certificar de que esses editores de genoma não viajem para os órgãos reprodutivos e acabem atingindo um espermatozoide ou óvulo? Assim, esse indivíduo poderia potencialmente passar a edição para seus filhos.”
No momento, ainda não se sabe a probabilidade de isso acontecer — mas Saha explica que é algo que eles estão analisando com cuidado, especialmente porque o tratamento parece pronto para se tornar significativamente disponível na próxima década.
Um editor de genes foi injetado em humanos pela primeira vez no ano passado, como parte de um teste clínico histórico da tecnologia.
Se as células reprodutivas acabassem sendo alteradas, “certamente, teríamos indivíduos com novas variantes de genes que poderiam ser potencialmente muito problemáticas”, diz Saha, que afirma ter colegas que acham que nunca será possível reduzir o risco a zero — embora ele também tenha colegas que são mais otimistas.
Um experimento fracassado
Mas, primeiro, vamos voltar aos bebês chineses com genes editados, para uma aula sobre o que pode dar errado quando a técnica é usada sem o devido cuidado.
He tinha como objetivo fornecer a eles uma versão do CCR5 que está naturalmente presente em cerca de 1% dos europeus do norte — os asiáticos orientais tendem a ter um tipo diferente.
Esta variante rara não contém 32 pares de letras (ou pares de bases) do código genético.
Portanto, embora a proteína que ela produz normalmente fique na superfície dos glóbulos brancos, as pessoas com essa mutação criam um tipo de proteína atrofiada que não chega à superfície.
Quando esse grupo excepcional de pessoas é exposto ao HIV, o vírus não consegue se agarrar ao CCR5 e entrar furtivamente — consequentemente, elas são imunes.
Este era o objetivo, mas não funcionou dessa maneira.
Em vez disso, Lula e Nana carregam genes CCR5 inteiramente novos. Como de costume, cada bebê tem duas cópias do gene — uma herdada de cada pai —, mas elas não foram editadas de maneira uniforme.
Nana teve acidentalmente um único par de bases extra adicionado a um, e quatro removidos do outro.
Enquanto isso, Lulu herdou uma cópia com 15 pares de bases inadvertidamente deletados, assim como uma versão totalmente inalterada.
“Nunca vimos essas proteínas CCR5 antes e não sabemos sua função no contexto de um ser humano”, diz Saha. “Estamos basicamente fazendo esse experimento agora.”
No momento, a maior parte da edição de genes envolve o método “Crispr” — uma série de tesouras genéticas desenvolvidas pela primeira vez pelas cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer A Doudna, ganhadoras do prêmio Nobel, em 2012.
A tecnologia se baseia em uma espécie de sistema imunológico antigo encontrado em um grande número de bactérias.
Quando encontram uma ameaça viral em potencial, elas copiam e colam parte de seu DNA em seu próprio genoma e, em seguida, o utilizam para desenvolver uma tesoura que pode identificar a sequência exata.
Se elas encontrarem com a ameaça novamente, simplesmente a cortam e desativam.
Este é mais ou menos o mesmo processo de edição de células humanas — os cientistas usam uma sequência guia para mostrar ao sistema Crispr onde se vincular e cortar, permitindo atingir certos genes com precisão e cortar segmentos indesejados.
O próprio sistema de reparo da célula remenda o corte, deixando um genoma perfeitamente alterado.
No entanto, isso nem sempre sai conforme o planejado. A confusão com os bebês chineses geneticamente editados ocorreu por causa dos chamados “efeitos fora do alvo”, em que o sistema Crispr se vincula a uma sequência que, por acaso, parece semelhante àquela que deveria estar cortando.
É um problema comum: um estudo recente mostrou que a edição de genes causou alterações não intencionais mais da metade das vezes.
Embora acredite-se que os dois genes CCR5 de Nana podem ter sido distorcidos o suficiente para protegê-la do HIV, a única cópia natural de Lulu significa que é provável que ela ainda seja suscetível ao vírus.
Não só o experimento acabou inventando novas mutações — como ele não alterou todas as células. Tanto Lulu quanto Nana têm algumas células que foram editadas e algumas que carregam as versões do CCR5 que herdaram de seus pais.
Ninguém sabe que porcentagem do corpo humano precisa ser convertida ao tipo resistente para fornecer proteção contra o HIV.
Esse “mosaicismo” surge do fato de que é mais fácil editar embriões do que alterar um óvulo recém-fertilizado, que consiste em apenas uma única célula.
Isso significa que nem todo o embrião é necessariamente afetado de maneira uniforme pelas edições — algumas células manterão sua composição genética original, enquanto outras serão alteradas.
Como esse grupo original se divide e se desenvolve em diferentes órgãos e tecidos, essa variação permanece — então, se você tivesse quatro células iniciais, e uma delas tivesse recebido uma mutação CCR5, ela poderia acabar em 25% das células do corpo.
Em 2018, o CCR5 era mais conhecido por sua capacidade de deixar o vírus HIV entrar nas células.
Hoje, há um consenso emergente de que ele tem uma variedade de funções — incluindo no desenvolvimento do cérebro, na recuperação de derrames, na doença de Alzheimer, na propagação de certos tipos de câncer e no resultado da infecção por outros patógenos.
“Não sabemos como as vidas dos bebês serão afetadas”, diz Saha, “quão suscetíveis eles serão a vários tipos de doenças infecciosas e o que isso significa em termos da pandemia atual e futuras.”
Na verdade, acredita-se que as proteínas CCR5 habituais protegem contra uma variedade de patógenos, como malária, febre do nilo ocidental, encefalite transmitida por carrapatos, febre amarela e vírus respiratórios, como a gripe — sugerindo que He pode ter privado os bebês de uma adaptação útil.
Uma potencial solução
Mas nem tudo é má notícia.
Em primeiro lugar, não é certo que a edição de células somáticas altere necessariamente as células reprodutivas — é apenas uma possibilidade teórica.
Para descobrir se isso está realmente acontecendo, Saha e sua equipe desenvolveram sistemas de gene-repórter em ratos de laboratório, que marcam qualquer célula alterada com uma proteína vermelha fluorescente, permitindo que sejam encontradas no microscópio.
Isso significa que é possível ver visualmente se, ao injetar em um camundongo um editor destinado, digamos, ao cérebro, ele vai acabar afetando seus espermatozoides ou óvulos.
“Vimos muitas células vermelhas no cérebro”, diz Saha.
“Até agora, não vimos nada nos órgãos reprodutores, o que é um resultado bom e tranquilizador.”
Em segundo lugar, nem toda edição somática precisa acontecer dentro do corpo.
Para alguns distúrbios, como a anemia falciforme, o tecido afetado — no caso, os glóbulos vermelhos — pode ser extraído e tratado fora do corpo, em uma placa de Petri.
Isso significa que o editor sempre encontra apenas as células que estão sendo atacadas, e quase não há risco de mutações serem transmitidas de geração para geração.
Por fim, quaisquer riscos potenciais podem acabar ditando a quem é oferecida a edição de células somáticas, a fim de limitá-la.
Por exemplo, se houver a possibilidade de alterar o DNA hereditário de uma pessoa, a técnica pode só ser oferecida a pacientes que já passaram da idade fértil ou que estão chegando ao fim de suas vidas.
“Em alguns casos, zero provavelmente não é o limite necessário para entrar na clínica”, diz Saha, explicando que é provável que muitas pessoas estejam dispostas a sacrificar a chance de um dia terem filhos em troca de melhorar sua qualidade de vida.
Ele acredita que o caminho a seguir é garantir que os pacientes estejam bem informados sobre os riscos antes de concordar com tais procedimentos.
Um experimento intergeracional
Mas digamos que a gente acabe com erros artificiais no patrimônio genético humano. Exatamente o quão permanentes eles poderiam se tornar?
Será que as novas mutações criadas hoje ainda podem ocorrer daqui a 10 mil anos, enquanto os humanos do futuro observam a explosão prevista de Antares em uma supernova tão brilhante quanto a Lua cheia?
De acordo com Greely, que escreveu um livro sobre as implicações do projeto de He, a resposta depende do que as edições fazem e como são herdadas.
“Elas podem simplesmente desaparecer ou serem oprimidas pelo vasto mar de alelos normais e variações genéticas normais”, diz.
“Algumas pessoas têm medo de que, se você fizer uma mudança, todos os humanos vão acabar carregando essa mudança. Isso é realmente improvável, a menos que a mudança seja enormemente benéfica.”
Esta última hipótese é, claro, uma possibilidade. Quer uma mutação seja gerada por meio de um erro de edição ou erros naturais à medida que o DNA é acondicionado em espermatozoides ou óvulos, eventualmente as mutações são úteis.
Alguns especialistas até sugeriram que os bebês CCR5 podem ter tido seus cérebros inadvertidamente aprimorados.
O argumento vem de pesquisas que mostram que a versão selvagem do gene que a maioria dos humanos herda — o tipo que os bebês teriam — suprime, na verdade, a “neuroplasticidade” do cérebro, ou a capacidade de crescer e se reorganizar.
Alguns estudos sugerem que as pessoas que não possuem um CCR5 normal podem se recuperar de derrames mais rápido e supostamente se saem melhor na escola, enquanto camundongos sem uma versão funcional desse gene têm uma memória melhor.
No entanto, há algumas situações em que mutações raras podem se espalhar amplamente, sejam úteis ou não.
Veja o caso da doença de Huntington, uma condição angustiante que gradualmente interrompe o funcionamento normal do cérebro, levando à morte.
É incomum para uma doença genética em que mesmo que você tenha uma cópia saudável do gene, você ainda a desenvolverá — o que significa que você pode esperar que acabe desaparecendo.
No entanto, no Lago Maracaibo, no noroeste da Venezuela — na verdade, uma grande enseada do Mar do Caribe —, há uma concentração maior de pessoas com a doença do que em qualquer outra parte do mundo.
As comunidades da região são formadas em sua maioria por pequenas vilas de pescadores e, embora a incidência da doença seja de cerca de uma em cada 37 mil pessoas no resto do mundo, lá mais de 50% dos habitantes de algumas vilas podem ter o risco de desenvolver a doença.
Acredita-se que isso tenha acontecido por duas razões.
Uma é o fato de que a doença de Huntington normalmente se materializa por volta dos 40 anos, ou seja, após a idade em que a maioria das pessoas tem filhos — e, consequentemente, a doença é quase invisível para a evolução, que se preocupa principalmente se um organismo sobreviveu até a idade de reprodução.
A segunda é o Efeito Fundador, que distorce a distribuição de genes em pequenas populações, permitindo que os genes incomuns dos “fundadores” — os primeiros membros da comunidade — se propaguem mais amplamente.
Acredita-se que a doença de Huntington no Lago Maracaibo tenha começado com apenas uma mulher, Maria Concepción Soto, que se mudou da Europa para uma aldeia de palafitas na região no início do século 19.
Ela era portadora da mutação mortal que causa a doença, que foi transmitida a mais de 10 gerações de descendentes — abrangendo mais de 14.761 pessoas vivas em 2004.
Se Nana ou Lulu se mudassem para uma área menos povoada com baixa migração, como uma ilha isolada, ou se juntassem a um grupo religioso com regras rígidas sobre casamento interracial, é possível que suas mutações pudessem estabelecer uma prevalência relativamente alta nessa comunidade.
Na China, onde acredita-se que elas vivam, há atualmente altas taxas de migração interna, então é supostamente menos provável que os genes se incorporem.
Outra possibilidade é que os erros genéticos estejam localizados próximos a um traço altamente benéfico no genoma, de modo que sejam herdados juntos — uma situação que permite que mutações neutras ou prejudiciais peguem carona rumo a uma prevalência maior do que merecem.
No entanto, Saha destaca que pode levar muitas gerações para que qualquer padrão na distribuição de erros genéticos se materialize.
“Estamos falando sobre experimentos que estão acontecendo ao longo de centenas de anos, não apenas alguns anos, como estamos acostumados em testes clínicos”, diz ele.
“Estou tentando pensar em outro tipo de experimento que fizemos assim, ao longo desse período — a mudança climática é a única que me vem à mente. É uma questão muito grande para nós pensarmos coletivamente.”
Há uma solução óbvia — embora não haja garantia de que os humanos com genes editados concordariam com ela, e depende de a pessoa estar ciente de que suas células reprodutivas foram editadas, o que pode não ser o caso daqueles que foram submetidos a uma edição somática para uma doença que se manifesta em outras partes do corpo.
Em vez de permitir que quaisquer mutações artificiais se propaguem, poderíamos simplesmente corrigi-las, usando a mesma técnica que foi usada para criá-las.
“Acho que é uma possibilidade real”, diz Greely.
“Ou [se uma pessoa tem uma cópia saudável, como Lulu] você deve ser capaz de usar a seleção de embriões, para se certificar de que sua prole não receba a versão alterada.”
Dado o quão pouco sabemos sobre as funções de certos genes em nosso ambiente atual, Saha acredita que devemos ser extremamente cautelosos ao fazer mudanças potencialmente milenares.
“Me surpreendo todos os dias, mas com tantas funções diferentes que os genes têm — tento ser o mais humilde possível em termos de supor que sei tudo o que uma determinada mutação genética faria em uma célula humana”, diz ele.
“São genes que estiveram envolvidos em nosso genoma por milhares de anos, se não mais — então, para nós, saber como eles vão funcionar para humanos em contextos variados nos próximos cem anos é realmente um desafio.”
Para decidir se uma edição é ética, pode ser que a gente precise entender primeiro em que tipo de mundo ela pode permanecer no futuro.
- Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
Zaria Gorvett
BBC Future