As convicções das pessoas sobre o álcool podem exercer forte influência sobre o seu comportamento quando embriagadas – e até mudar seu comportamento quando estão sóbrias.
Quando chegam as festas de final de ano, muitas pessoas comemoram com um copo ou dois a mais que o normal.
Não importa se você mesmo bebe ou se simplesmente observa os demais – você não precisa de mim para explicar as consequências.
Para algumas pessoas, a consequência será um calmo relaxamento e, para outros, extrema extroversão.
Aquela pessoa tímida e ansiosa por tornar-se o escândalo da festa depois de um simples martini pode ser uma metáfora da TV ou do cinema, mas muitos de nós conhecemos alguém que também representa esse papel na vida real.
E isso é um certo mistério científico, já que a ação biológica do etanol – a substância ativa das bebidas alcoólicas – simplesmente não deveria causar esse tipo de efeito.
“Em termos de propriedades neuroquímicas, o etanol é um sedativo do sistema nervoso central”, explica Andrew Lac, psicólogo da Universidade do Colorado em Colorado Springs, nos Estados Unidos.
“Mas, quando as pessoas consomem álcool, muitas vezes elas sentem efeitos estimulantes”, afirma ele. Elas falam alto, ficam agitadas e até antagonizam com os demais, “o que é o oposto do esperado”.
Para solucionar esse mistério, pesquisadores como Lac começaram a examinar a forma como as nossas convicções moldam a sensação de embriaguez e influenciam nosso comportamento.
Aparentemente, as pessoas podem associar o álcool a certas experiências, criando uma espécie de profecia da embriaguez que se autorrealiza. E, em muitas situações, seus pensamentos podem ser mais potentes que o próprio álcool.
Essa ideia de que as convicções poderão moldar, de forma poderosa, os efeitos da embriaguez pode parecer surpreendente. Mas, como descrevo no meu livro The Expectation Effect (“O efeito da expectativa”, em tradução livre), a ser lançado em breve, nossa forma de pensar molda quase todos os outros elementos das nossas vidas.
O exemplo mais conhecido pode ser o efeito placebo, segundo o qual a crença na eficácia de um tratamento pode trazer seus próprios benefícios – como a redução da pressão arterial, redução de inflamações ou avisando o cérebro para que libere seus próprios opioides anestésicos – que são independentes dos efeitos químicos do remédio.
Além da medicina, sabemos agora que nossas expectativas podem influenciar os benefícios dos nossos exercícios físicos, nossas reações a uma nova dieta, nossa experiência de insônia e fusos horários, o impacto da tensão e ansiedade, nossa força de vontade e até nossa longevidade.
Considerando o enorme predomínio dos efeitos da expectativa, seria muito surpreendente se nossas convicções não influenciassem, de alguma forma, nossas reações à bebida.
O desafio do molho picante
Algumas das evidências mais convincentes foram obtidas por Laurent Bègue, da Universidade Grenoble Alpes, na França.
No final da década de 2000, ele elaborou um experimento detalhado para testar a agressividade das pessoas sob a influência do álcool, sob o pretexto de um falso teste de sabor.
Os participantes receberam, em primeiro lugar, um conjunto de três coquetéis. Para alguns participantes, eles eram totalmente sem álcool, mas, para outros, os coquetéis continham teores alcoólicos altos ou moderados.
É importante notar que os participantes não sabiam, necessariamente, qual coquetel estavam recebendo: alguém que achasse que estava recebendo a bebida com alto teor alcoólico, por exemplo, pode ter recebido, na verdade, a versão sem álcool.
Para impedir que os participantes adivinhassem o teor alcoólico, eles foram informados que o coquetel sem álcool havia sido projetado para ter o mesmo sabor da bebida real. Isso permitiu que Bègue manipulasse suas expectativas de embriaguez.
Para testar os sentimentos agressivos, os participantes foram divididos em pares e solicitou-se que eles temperassem, com sal e molho picante, um prato de batatas amassadas a ser servido para cada parceiro.
O que os participantes não sabiam é que o parceiro era, na verdade, um ator representando uma pessoa deliberadamente hostil – chutando sua cadeira no caminho para a sala e ameaçando “explodir [sua] cabeça” com o tempero.
Naturalmente, os participantes poderiam vingar-se preparando um prato bem desagradável em troca.
De forma geral, os participantes que acreditavam que haviam bebido os coquetéis potentes apresentaram maior propensão a usar mais molho picante no tempero do prato do seu parceiro, enquanto o teor de álcool real teve muito menos influência nessa propensão.
Esta é uma evidência do claro efeito da expectativa influenciando o comportamento de embriaguez.
Bègue afirma que a associação entre o álcool e a agressividade pode surgir cedo. “Perguntou-se a crianças com 8 anos de idade quais seriam as consequências se elas bebessem álcool em vez de chá gelado”, ele conta. “Elas responderam que o álcool as incitaria a cometer abusos verbais e mais brigas com outras pessoas.”
Desde então, Bègue vem estudando as formas em que nossas expectativas podem influenciar a sensação de autoconfiança normalmente decorrente da embriaguez.
Como no primeiro estudo, os participantes receberam coquetéis que podiam ou não ter sido rotulados com seu teor de álcool correto.
Pediu-se em seguida aos participantes que escrevessem e filmassem um pequeno comercial para a bebida.
Por fim, eles deveriam assistir à filmagem e avaliar sua própria capacidade de atração, originalidade e humor – um exercício que muitas pessoas sóbrias podem considerar motivo de acanhamento.
Novamente, as convicções dos participantes sobre seu consumo de álcool determinaram suas reações.
Os que imaginavam estar embriagados fizeram avaliações mais positivas de si próprios que aqueles que acreditavam que ainda estavam sóbrios, enquanto o efeito do próprio teor de álcool não foi significativo.
Red Bull com vodca dá asas?
Alguns efeitos de expectativa altamente específicos podem depender do tipo de bebida consumido pelas pessoas.
Alguns anos atrás, Yann Cornil, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, quis pesquisar se misturar bebidas energéticas e vodca pode realmente aumentar a embriaguez, conforme relatado por muitas pessoas em episódios esporádicos.
Cornil primeiramente questionou aos participantes sobre o seu uso de álcool e bebidas energéticas e suas expectativas sobre os efeitos da bebida.
Em seguida, ele ofereceu um coquetel, marcado como “vodca-Red Bull”, “coquetel de vodca” ou “coquetel de frutas exóticas”, e pediu que eles preenchessem outros testes e questionários que avaliariam sua experiência de embriaguez.
Confirmando os resultados de Bègue, Cornil concluiu que os rótulos alteraram significativamente a experiência dos participantes.
Os participantes informados como tendo bebido a mistura de vodca e RedBull relatavam sentir-se mais embriagados que aqueles que haviam provado os coquetéis de “vodca” ou “frutas exóticas”.
A extensão média desse efeito foi grande – os rótulos causaram diferença de 50% na percepção da embriaguez. Mas houve variações significativas entre os indivíduos, o que pareceu depender das suas convicções pré-existentes.
Se o participante chegasse ao laboratório considerando que as bebidas energéticas podem aumentar os efeitos do álcool, ele exibiria reação muito mais forte ao rótulo que aqueles que não acreditavam na lenda urbana.
Padrões similares podem ser observados em um teste de disposição a riscos. Os participantes receberam um vídeo game no qual precisavam encher um balão virtual. Quanto maior o balão, mais dinheiro eles poderiam ganhar – mas, se bombeassem ar demais e o balão estourasse, eles perderiam tudo.
Acreditando que haviam bebido a mistura de vodca e Red Bull, os participantes foram muito mais propensos a arriscar sua sorte, mas somente se já esperassem que as bebidas energéticas aumentassem sua embriaguez – e que a sua embriaguez ampliasse sua disposição a riscos.
“A importância da bebida energética criou expectativas psicológicas, que se traduziram em uma sensação subjetiva de embriaguez, com consequências comportamentais”, afirma Cornil.
Sob a influência (da expectativa)
Os experimentos de Bègue e Cornil oferecem importante prova dos princípios, mas eles só conseguiram capturar um momento na vida das pessoas.
Um dos estudos recentes de Lac rastreou o papel da expectativa no comportamento de consumo de bebidas das pessoas a longo prazo.
Em uma pesquisa maior, ele recrutou mais de 400 participantes nos Estados Unidos, com 18 a 79 anos de idade, e pediu que eles avaliassem uma série de afirmações em escala numérica de 1 (discordo) a 4 (concordo). Alguns exemplos encontram-se abaixo.
Quando bebo álcool espero:
· sentir-me corajoso
· sentir-me calmo
· sentir-me sexy
· sentir-me sociável
· assumir riscos
· falar alto, de forma tempestuosa ou fazer barulho
· sentir-me mal humorado
Um mês depois, ele deu continuidade ao estudo, enviando questionários detalhados sobre o uso de álcool dos participantes e suas experiências ao longo desses 30 dias.
Talvez sem causar surpresas, as expectativas influenciaram a quantidade de consumo das pessoas. Os participantes com associações mais positivas ao álcool eram propensos a beber um pouco mais.
Mas as expectativas também causavam efeito independente sobre o comportamento dos participantes.
Uma pessoa que acreditasse que o álcool a deixaria mais relaxada e sociável perceberia que se sentia menos tensa e com maior autoestima.
E uma pessoa que achasse que poderia falar de forma tempestuosa e correr riscos observou que havia agido de forma mais extrema, fora de sua personalidade.
Para Lac, “essas convicções servem de filtros mentais que orientam o que acontece quando bebemos”.
Na maioria dos casos, as expectativas tinham importância igual ou maior que a quantidade real de bebida consumida – exatamente como haviam demonstrado os experimentos de laboratório de Bègue e Cornil.
“Isso sugere que muitas das consequências causadas pelo uso de álcool realmente não se devem às propriedades neuroquímicas”, afirma Lac.
O poder das expectativas do álcool na vida diária pode também ser observado em um estudo recente de Christine Lee, da Universidade de Washington, e Melissa Lewis, da Universidade do Norte do Texas, ambas nos Estados Unidos.
Elas pediram a estudantes que respondessem a pesquisas sobre suas expectativas e comportamento de bebida por meio de entrevistas telefônicas três vezes por dia, ao longo de duas semanas.
As pesquisadoras concluíram que “as expectativas da pessoa sobre os efeitos específicos do álcool tendem a ser autoalimentadoras para os efeitos subjetivos da bebida, mesmo quando não houver relação direta com os efeitos fisiológicos”. Esses efeitos subjetivos incluíram os benefícios positivos – sentir-se relaxado e de melhor humor – e as consequências negativas de “tornar-se agressivo, rude ou desagradável, criando situações embaraçosas”.
É melhor reduzir o consumo de álcool?
É preciso destacar que esses estudos analisaram principalmente o uso moderado de bebidas alcoólicas em populações saudáveis.
As pessoas que possuem problemas sérios precisam de apoio profissional e será necessário mais que uma mudança das convicções sobre o álcool para alterar comportamentos prejudiciais.
Mas espero, com base nas pesquisas para o meu livro, que o melhor conhecimento desses resultados possa contribuir para um estilo de vida mais saudável para as pessoas que apreciam uma bebida ou duas, mas gostariam de reduzir essa quantidade.
Isso certamente me fez questionar minha relação com o álcool. Como muitas outras pessoas, muitas vezes bebo para me ajudar a relaxar e porque sinto que ele ajudará a facilitar situações sociais.
Mas, depois de aprender que esses efeitos positivos vêm, em grande parte, das minhas expectativas, comecei a imaginar se eu poderia mudar de alguma maneira minha forma de pensar, para ter os mesmos benefícios com menos álcool e sem os seus efeitos negativos.
Você pode duvidar que isso possa funcionar sem algum tipo de desapontamento, mas pesquisas recentes indicam que pode não ser este o caso.
Quando as pessoas conhecem o efeito placebo, por exemplo, elas podem ter alívio significativo de suas dores com pílulas de placebo com “rótulos abertos”, que não tentam esconder o fato de que a substância é inerte.
Aparentemente, o conhecimento dos efeitos da expectativa e sua base científica pode produzir alterações muito potentes da nossa forma de pensar.
Embora eu não tenha decidido parar totalmente de beber, estou experimentando porções pequenas para reduzir a quantidade de bebida – optando por misturas de vinho e soda, em vez de uma taça cheia de vinho, coquetéis sem álcool no lugar de martinis ou cervejas com baixo teor alcoólico.
Desta forma, se eu estiver em algo como uma celebração ou um brinde, muitas vezes sinto o mesmo brilho que teria experimentado com minha bebida comum. E, quando acordo sem ressaca no dia seguinte, agradeço a mim mesmo pela decisão.
Toda a diversão sem os efeitos negativos, graças a um pouco de pensamento positivo? Proponho alegremente um brinde a isso!
* O livro de David Robson, O efeito da expectativa: como o seu pensamento pode transformar a sua vida (em tradução livre do inglês) será publicado no Reino Unido em 6 de janeiro de 2022 e, nos Estados Unidos, em 15 de fevereiro de 2022.
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.