Tendo planejado matar a velha (que era usurária e supostamente rica) e tendo executado o que planejou, Raskólhnikov não contava assassinar mais ninguém. Mas a jovem que vivia com a velha apareceu na cena do crime, e ele deu cabo dela também.
[dropcap]O[/dropcap] personagem Raskólhnikov tinha uma teoria que de algum modo o impulsionou ao crime. Para ele, alguns homens não precisam sempre obedecer a lei. Em artigo chegou mesmo a defender a ideia de que certas pessoas, se tivessem obedecido a lei, não teriam se tornado heróis. Segundo Raskólhnikov, Napoleão Bonaparte tornou-se grande por saber transpor os limites legais e ir além do lugar comum da obediência ao que lhe era imposto. Inúmeros outros homens teriam se tornado grandes líderes justamente por saberem transpor o que é tido como correto, agido com audácia suficiente para sair dos comportamentos e ações previsíveis e, com isso, mesmo incompreendidos no início de suas ações, acabaram sendo aplaudidos depois que a maioria viu os efeitos de seus atos.
De certo modo essa ideia irá aparecer mais tarde em uma das famosas frases de Charles Chaplin. Para ele “se matamos uma pessoa somos assassinos. Se matamos milhões de homens celebram-nos como heróis” (FONTE: http://pensador.uol.com.br/autor/charles_chaplin/).
Na obra de Dostoievski “Crime e Castigo”, o personagem Raskólhnikov pensava que se matasse a velha e tomasse o dinheiro que ela tinha, faria um bem para a humanidade. Segundo uma conversa que ouviu, o dinheiro assim conseguido poderia comprar comida para os famintos, aliviar o sofrimento de muitos doentes, ao invés de ficar parado inutilmente no cofre da usurária. Mas, uma vez cometido o assassinato, Raskólhnikov não usufruiu do dinheiro do roubo. Nem ele, nem ninguém. Ele o escondeu sob uma pedra e continuou a viver tão pobre quanto antes.
Ao final Raskólhnikov acabou condenado a oito anos de prisão, com trabalhos forçados. O castigo vivido por ele entre o crime e a prisão é de caráter moral. Atormentado pelas circunstâncias, pela falta de recursos e cada vez com mais cuidados que precisava ter para não se denunciar e ser preso. Tendo finalmente confessado o crime a prisão será para ele lugar de transformação; preso, Raskólhnikov sente-se um novo homem. Nas palavras do narrador do romance: “mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali” (DOSTOIEVSKI. “Crime e Castigo”. São Paulo: Nova Cultural, 2003. p. 510).
Teria Raskólhnikov consciência do crime? É possível que não. Ao menos não do modo como seria razoável. Embora tenha se entregado às autoridades policiais, o diálogo interior deste personagem denuncia a falta de certeza acerca do erro cometido. Das duas coisas que dão título ao romance “Crime e Castigo”, Raskólhnikov está certo apenas de ter recebido o castigo e possivelmente apenas por não ter sabido transpor o limite entre lei e ação de um modo que o tornaria herói e benemérito.
Além da história em si, chama a atenção do leitor a posição do romance em relação a uma questão que é de nossos dias e de extrema gravidade. Trata-se do pan-eslavismo e do ufanismo russo. No hospital da prisão Raskólhnikov tem um sonho estranho do qual se depreende que os orientais dominarão o ocidente. Diz o narrador que Raskólhnikov “sonhou, durante a sua doença, que o mundo todo estava condenado a ser vítima de uma terrível doença, inaudita e nunca vista praga que, originária das profundidades da Ásia, cairia sobre a Europa” (p. 506). No mundo ocidental, segundo esse sonho, os homens começaram a se desentender cada vez mais, a ponto de abandonarem o trabalho e cada um tentar impor às outras pessoas suas ideias, sem nunca aceitar os pontos de vista dos outros. Desse modo reinava a confusão, sem nenhum acordo possível entre os ocidentais. “Tudo e todos se perderam. […] somente alguns conseguiram salvar-se em todo o mundo, homens puros e escolhidos, destinados a dar início a uma nova linhagem humana e a uma nova vida, a renovar e a purificar a terra, mas ninguém via esses seres em parte alguma, ninguém ouvia a sua palavra e a sua voz” (p. 506-507).
A grande obra de literatura é assim reconhecida por ser também atual. Matar, o mais terrível dos atos humanos, pode não ser considerado crime sob a ótica de Raskólhnikov, e sob o olhar de alguns de hoje, desde que a causa justifique tal ação. Ou se é crime, teriam sua razão de ser em uma vontade maior, de fazer justiça, de conseguir algo para si rapidamente, para realizar uma vingança, ou outra alegação qualquer. Que o digam os mais de 50 mil assassinatos apurados em maio de 2014 no Brasil (Fonte: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/27/brasil-tem-recorde-historico-de-homicidios.htm). Para esses mortos a Presidente Dilma não disse estar consternada, ao menos não tanto quanto disse estar em razão do fuzilamento do traficante brasileiro na Indonésia. Mas isso tudo é culpa, não dos fatos, e sim do relativismo que campeia no ocidente, criando a discórdia entre as pessoas sobre um mesmo assunto, como foi visto por Raskólhnikov em seu sonho. Será que a sentença de Charles Chaplin está mudando a opinião de algumas autoridades acerca dos criminosos? Nem é bom pensar nisso. Então paro aqui.