Temos sofrido com a perda de algumas pessoas marcantes em nossa história atual, não consigo refletir em textos essas perdas, porém, elas me levaram para uma época triste de nossa história, onde também uma grande perda atingiu violentamente as pessoas em Porto Velho e região.
[dropcap]O[/dropcap] dia em que nossa Estrada de Ferro Madeira Mamoré foi desativada. Ouvi muitos relatos, testemunhos e li algumas coisas que foram escritas por nossos historiadores, senti a necessidade de me expressar sobre esse momento incomum.
Nossa terra possui uma história marcada pela dor e sofrimento, chegar nesse chão, sempre foi um grande desafio. Rondônia ainda é uma das últimas fronteiras a ser desvendada, revelada e dissecada. Tudo está em movimento em construção. Muitas coisas ainda estão por serem feitas. O processo de ocupação mais eficiente, abrupto, ininterrupto, avassalador, na nossa história, ocorreu nos últimos quarenta anos, os grandes movimentos migratórios foram intensificados na década de setenta.
Organizações e Instituições foram inventadas, criadas numa tentativa governamental desastrada e desesperada para atender as famílias que chegavam sonhando com os quarenta e dois alqueires de terras mágicas, onde se plantando, tudo brotaria e frutificaria como nos contos de fadas.
O 5° BEC foi criado para oferecer condições de trafego para as pessoas que utilizariam as rodovias amazônicas. O período chuvoso praticamente destruía todas as estradas, quase não existia asfalto na região. A BR 364 foi asfaltada somente no início da década de oitenta, incrementando ainda mais o gigantesco movimento migratório.
Quando fiz a primeira viagem de Colorado do Oeste para Porto Velho em 1981, o trajeto de pouco mais de oitocentos quilômetros foi vencido após 32 horas de atolamentos em um ônibus apelidado de “Tatuzâo”, os mais maldosos o apelidaram de “Cata Corno” dadas as péssimas condições do transporte. Lembro que esse percurso hoje em dia é vencido em treze horas.
O 5° Batalhão de Engenharia e Construção prestou importantes serviços ao novo Estado que ia surgindo, também cometeu seus erros, um deles foi o de desativar e sucatear as máquinas e equipamentos da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.
Infelizmente ninguém ousou questionar a ordem de desativação e posterior sucateamento da ferrovia que fazia pulsar a cidade de Porto Velho. Foi uma triste perda para o Brasil, a Amazônia, o Território de Rondônia e principalmente para Porto Velho.
O mundo estava perdendo um elemento histórico, resultante de um esforço humano sem precedentes. Um dos acontecimentos extraordinários que exaltou os homens os elevando as condições capazes de provocar os sentimentos mais profundos nos poetas, dramaturgos, músicos e literários em todos os cantos.
Ferrovia única, verdadeira epopéia que se confunde com as lendas e mitos tão presentes no imaginário regional da selva. Antes, a Amazônia cantada por seus belos e gigantescos rios, suas feras, seu clima, ganha um novo mito, homens sem rosto, nome, história. Homens pequeninos que em função de sonhos, desejos e devaneios buscaram o enriquecimento na mata escura, distante e profunda. Enfrentaram os mistérios sem fim de uma realidade monstruosa que não perdoou ninguém.
A morte foi, como nunca, o resultado liquido e certo, o sofrimento e agonia foi a mais triste realidade dos que ousaram beber água desses rios que nos cercam e alimentam. O retorno com a riqueza sonhada não ocorreu e as lembranças da vida anterior, passado distante europeu, asiático, caribenho, era o único alento diante da triste realidade equatorial. Os homens pequeninos em função de tamanho enfrentamento tornaram – se gigantes personagens desse singular evento que foi a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.
Mas a história nunca para e um tempero a mais surgiu no horizonte da dramática ferrovia, seu fim estava decidido, homens pequeninos, bem menores que aqueles simplórios operários que a construíram, entram em cena, uniformizados, e decidem em gabinetes ritmados por pobres marchinhas decadentes, desativar a ferrovia.
Foi uma das cenas mais tristes de toda a nossa história, ocorreu em Porto Velho em 10 de julho de 1972, quando foi materializada a infame ordem de desativação da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.
Era um dia diferente, como se as pessoas estivessem aguardando a ordem de execução de um parente. Era um dia sem cor, a cidade esmorecida, triste, melancólica e impotente. Homens, mulheres e crianças foram se aproximando e viram reunidas no pátio todas as locomotivas com aquela cor negra com riscos que mais pareciam cicatrizes da grande empreitada, os detalhes em branco e vermelho, mais do que nunca, estavam ressaltados. Elas imponentes pareciam ser compostas por pedaços de pessoas, eram: Barbadianos, Antilhanos, Gregos, Italianos, Alemães, Bolivianos etc.
Uma despedida fúnebre foi organizada onde todas as máquinas efetuariam o último, longo e desesperado apito.
Centenas de pessoas se reuniram no pátio da Estrada de Ferro em Porto Velho, em meio à profunda tristeza, para assistirem a mais um capítulo de dor e angústia ligado à ferrovia que por décadas dera significado e importância a todos que viviam aqui. OS MILITARES ESTAVAM AMPUTANDO UMA CIDADE INTEIRA e não se davam conta, pois a ordem burra não foi contestada e as pessoas viram as locomotivas, peças, equipamentos, vagões, trilhos e estações inteiras serem jogadas no abismo sem fim da história.
Peças que lembram à época da revolução industrial foram transformadas em sucatas, cortadas e vendidas para o ferro velho, como denunciou Manoel Rodrigues Ferreira no livro a Ferrovia do Diabo.
As pessoas viveram um daqueles momentos onde o tempo, espaço e sentimentos se entrelaçam e vida e morte se tornam íntimos, a vida contada por apitos se acabava, as gerações futuras não viveriam o compasso marcado pelo chegar e sair das velhas locomotivas, crianças não conviveriam mais com os longos ruídos dos apitos em suas lembranças.
Uma coisa que era tudo para nossa cidade simplesmente deixava de existir, muitos não sabiam, mais estavam também desaparecendo naquele triste momento.
A cidade perdia ali parte significativa de sua existência, porém, a Madeira Mamoré, se transformou em um mito amazônico e os mitos são eternos. Por mais que não queiram, ela será eternamente um ingrediente do povo amazônico, “desse rincão, que com orgulho exaltaremos enquanto nos palpita o coração”.
Ordem de militar deve ser cumprida, porém ordem burra, seja de quem for, deve ser questionada, o que, infelizmente, não ocorreu.
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