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O enigma do efeito mais grave da ômicron nos EUA

Ilustração de proteínas de ligação do coronavírus (vermelho) se conectando aos receptores da célula humana alvo (azul) — para os coronavírus, estes receptores são do tipo enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2)

Mesmo com a variante ômicron varrendo o mundo, as autoridades de saúde pública de alguns país perceberam que, na maioria dos casos, o número de pacientes hospitalizados com covid-19 permanece significativamente menor do que em ondas anteriores da pandemia.

Mas não é isso que tem acontecido nos EUA, onde o número de pacientes internados por causa do coronavírus atingiu patamares recordes. De acordo com dados oficiais do país, 146 mil pessoas estavam hospitalizadas com o vírus em 11 de janeiro, superando um recorde anterior estabelecido em janeiro de 2021.

comparação de internações por covid em cinco países

O vizinho Canadá também tem sofrido, em patamares menores, um avanço da pandemia nos últimos dias.

Afinal, o que está por trás da diferença entre a experiência da América do Norte com a onda atual e o que ocorreu na África do Sul e na Europa até agora?

Para especialistas entrevistados pela BBC, os EUA parecem viver uma “tempestade perfeita” da pandemia, com menos pessoas vacinadas, equipes de saúde exaustas, o inverno, a presença da variante delta (mais grave) enquanto a ômicron se espalha rapidamente, dificuldades de acesso a unidades de saúde e uma população com níveis alarmantes de obesidade e hipertensão, fatores que aumentam as chances de ter covid grave.

E o Brasil? Vale lembrar que o país vive atualmente uma explosão de casos e internações de covid-19, com 100 mil infecções registradas em 24h e um terço dos Estados em situação preocupante por causa da ocupação acelerada de leitos em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Mas ainda assim esses números estão bem longe de retratar a realidade. O Ministério da Saúde vive um apagão de informações da covid-19 há mais de um mês, impedindo que se entenda o tamanho da onda atual ao redor do país. Além disso, a estratégia adotada pelo governo Bolsonaro levou o Brasil a ser uma das nações que menos testam sua população para detectar casos, além de medidas contra vacinação e uso de máscaras. Por isso, não cabe comparar a atual onda no Brasil com o resto do mundo.

O que os números nos EUA mostram?

Vamos começar com este gráfico comparando quantas pessoas em vários países estiveram no hospital com covid-19 durante a pandemia. A comparação foi ajustada para levar em conta o tamanho da população e representa uma proporção do número de pacientes hospitalares infectados por cada 1 milhão de habitantes.

comparação de internações por covid em cinco países

Os vários picos representam momentos em que cada nação foi atingida por uma nova onda de covid, incluindo o surto inicial e o influxo de pacientes hospitalares, o aumento do inverno passado (no hemisfério Norte) ou o pico do verão causado pela variante delta.

A linha verde, por exemplo, mostra o quanto a Itália foi atingida tanto no início da pandemia quanto no ano passado, atingindo uma alta de 638 pacientes infectados por milhão de habitantes em 23 de novembro de 2020.

No lado direito do gráfico, todos os países experimentaram um grande aumento nos pacientes hospitalares infectados por covid devido à variante ômicron. O interessante, no entanto, é comparar as taxas que cada país está atingindo atualmente em relação aos picos anteriores.

Para Itália, França e Reino Unido, vemos que o número de pacientes hospitalizados com covid permanece muito menor do que nas ondas anteriores. No Reino Unido, 291 pacientes com coronavírus por milhão estavam no hospital em 10 de janeiro de 2022. Há pouco menos de um ano, a proporção era de 576 por milhão. Na França, a proporção ficou em 347 por milhão no mesmo dia de 2022, em comparação com uma alta de 490 em novembro de 2021.

Nos EUA, por outro lado, 411 pacientes de covid-19 nos EUA por milhão de pessoas estavam hospitalizados em 9 de janeiro de 2022 – superando o pico anterior de 400 por milhão estabelecido em 14 de janeiro de 2021.

Da mesma forma, os dados mostram que no Canadá 206 pessoas estavam hospitalizadas por milhão em 11 de janeiro de 2022, em comparação com os picos anteriores de 118 em abril e 128 em janeiro do ano anterior.

Qual é o impacto da onda atual nos hospitais nos EUA?

Hospitais em território americano têm relatado que o aumento de pacientes infectados agravou muito a pressão sobre as instalações já sobrecarregadas pela pandemia.

Juan Reyes, diretor de medicina hospitalar da Universidade George Washington, na capital americana Washington DC (que tem uma das maiores taxas de internações hospitalares per capita), disse que esse aumento “tem sido muito mais difícil” do que os anteriores.

“O desafio que estamos enfrentando agora é que está acontecendo em um volume maior e a estrutura está um pouco mais escassa”, disse ele à BBC. “A diferença agora é que há muito cansaço, nos profissionais de saúde e na população em geral.”

Dois pacientes deitados em macas, separadas por uma barreira; um deles é tocado por uma enfermeira
Médicos relatam frequência, nos hospitais, de jovens internados com covid-19 que eram também obesos

Lewis Rubinson, diretor médico do Morristown Medical Center, em Nova Jersey, afirmou que o atual aumento de internações “é cerca de duas vezes maior” do que seu recorde anterior no inverno de 2020, apesar de infecções menos graves entre os pacientes.

Ele atribuiu os números crescentes de infecções em parte ao aumento dos testes realizados em todos que chegam ao hospital por qualquer motivo. Nos EUA, Reino Unido e Canadá, pacientes recém-admitidos são testados para covid-19 independentemente do que os levou ao hospital.

Ainda assim, “o impacto geral nos hospitais pelos números absolutos é tremendo”, disse ele. “Se você tirar até um terço deles, ainda é uma enorme quantidade de pacientes que estamos tratando”.

No Reino Unido, essa proporção dos chamados casos incidentais de covid foi estimada pelos chefes do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) entre 20 e 30% dos casos.

O que aconteceu na África do Sul?

Na África do Sul, onde a variante ômicron foi detectada pela primeira vez em novembro de 2021, cientistas descobriram que os infectados com essa variante têm menos probabilidade de serem hospitalizados e mais probabilidade de se recuperarem rapidamente.

Embora dados atualizados sobre a taxa de pacientes com covid no hospital per capita não estejam disponíveis, muitos hospitais sul-africanos relataram que o número foi significativamente menor do que durante as ondas anteriores da pandemia.

O hospital universitário Steve Biko, na cidade de Tshwane, por exemplo, informou ao International Journal of Infectious Diseases que o número de pacientes infectados era cerca de metade do registrado antes de meados de novembro passado.

Os pesquisadores acreditam que as ondas anteriores de covid-19 da África do Sul e a taxa de vacinação relativamente baixa significavam que muitos moradores provavelmente já haviam sido expostos e haviam constituído algum nível de imunidade contra o coronavírus.

Por que os EUA são diferentes?

Especialistas apontam várias razões pelas quais a taxa de pacientes hospitalizados com covid é maior nos EUA e no Canadá do que na maioria das outras partes do mundo.

David Larsen, epidemiologista e professor especializado em saúde global da Universidade de Syracuse, em Nova York, disse à BBC que a população dos EUA é marcadamente diferente da da Europa e da África do Sul.

“Temos uma população mais velha do que a África do Sul. Além disso, os EUA são semelhantes em estrutura etária à Europa. Mas também há uma população menos saudável do que na Europa.”

Como exemplos, Larsen observou que as taxas de hipertensão e obesidade (ambas comorbidades que aumentam muito o risco de ter covid grave) são mais altas nos EUA do que na maioria dos outros países.

Larsen acrescentou que “é incrivelmente frustrante” ouvir os americanos minimizarem a ameaça contínua da ômicron e acreditarem que, como a África do Sul, os EUA podem em breve deixar para trás a atual onda. Ele também aponta a importância da estação do ano.

“A sazonalidade também é diferente”, disse. “O aumento da ômicron na África do Sul foi durante o verão, mas está atingindo os EUA no inverno, quando sabemos que mais pessoas se reúnem em ambientes fechados e há mais transmissão… Isso vai ser ruim.”

Mark Cameron, professor associado do departamento de população e ciências quantitativas da saúde da Case Western University, em Ohio, disse à BBC que acredita que os EUA estão sofrendo “uma tempestade perfeita” de covid-19, comorbidades, acesso desigual aos cuidados de saúde e hostilidade a vacinas, máscaras e outras medidas preventivas.

“Quando essa ‘tempestade perfeita’, toda essa sorte de de vulnerabilidades exclusivas dos EUA se combina, você tem um surto do vírus que pode levar rapidamente de um aumento de casos a mais hospitalizações, que sobrecarregam os hospitais e as equipes de saúde”.

Pouco mais de 63% da população dos EUA está totalmente vacinada, muito menos do que no Reino Unido (71%), bem como na Itália e na França (ambos 75%). No Canadá, quase 79% da população está totalmente protegida. No Brasil, essa taxa é de 68%, segundo dados do portal Our World in Data, da Universidade de Oxford.

E o Canadá?

Donald Vinh, especialista em doenças infecciosas do Centro de Saúde da Universidade McGill, em Montreal, disse que, em Quebec e outros lugares do Canadá, até metade de todas as novas internações envolvem pessoas “inadequadamente vacinadas”.

profissionais de saúde no canadá

Sistema de saúde do Canadá também tem sofrido forte pressão da onda atual da pandemia

“Como porcentagem da população, é um número baixo. Talvez 10% da população que poderia ter tomado a vacina não esteja duplamente vacinada”, disse ele. “Eles tendem a se agrupar em áreas urbanas densas. Quando há variantes altamente transmissíveis que podem afetar uma população inadequadamente vacinada, isso leva a um espalhamento contínuo e às altas transmissões comunitárias que estamos vendo.”

Como os EUA, Vinh disse acreditar que o Canadá é atormentado por uma política de saúde pública “inadequada” quando se trata de covid-19. “Em outras palavras, não há um único método unificado de como vamos fazer as coisas em geral”, disse ele. “É mais regional do que nacional, e por isso há lacunas. As consequências disso são as pessoas sendo hospitalizadas.”

E a variante delta?

Os médicos também têm alertado que o alto nível de internações hospitalares nos EUA e no Canadá pode ser devido à variante delta ser mais prevalente em muitas áreas.

Um estudo publicado em agosto passado pela The Lancet Infectious Diseases, que investigou 43 mil pacientes no Reino Unido, descobriu que a variante delta tinha mais que o dobro do risco de internação hospitalar do que as variantes anteriores.

Monica Gandhi, médica de doenças infecciosas e professora da Universidade da Califórnia em São Francisco, disse à BBC acreditar que os pacientes da delta sejam uma parte significativa das internações hospitalares da covid-19 nos EUA. Mas é difícil determinar o número real.

“Não sabemos quantos casos de delta existem. O que os EUA começaram a fazer é olhar para o número de novas infecções e sequenciá-las. A ômicron representa 95% das novas infecções, mas não sabemos quanto delta ainda temos.”

No hospital onde trabalha, acrescentou Gandhi, alguns pacientes “estão mais doentes e alguns estão menos doentes, e parece que tanto a delta quanto a ômicron estão lá”.

O que se deve esperar da pandemia?

Em muitos países, os pesquisadores acreditam que a variante ômicron começou a perder força, possivelmente sinalizando o fim do aumento de pacientes hospitalizados com covid.

Projeções de pesquisadores da Universidade de Washington, por exemplo, apontam que o número de casos diários nos EUA chegará a 1,2 milhão até 19 de janeiro. Outros cientistas projetam que o pico de casos ocorra antes.

No curto prazo, no entanto, os especialistas acreditam que os hospitais continuarão sofrendo com o número elevado de pacientes nos EUA e no Canadá, mesmo que caiam em outros países.

“A situação é terrível. Realmente não há outra palavra para descrevê-la”, disse Vinh, sobre a pandemia no Canadá. “Eu adoraria começar a ver um ponto de inflexão que nos diga que estamos no platô, mas agora tudo o que estou vendo é uma colina. Não é mais uma colina. É uma parede.”

Na avaliação de médicos na linha de frente nos EUA, tanto Cameron quanto Gandhi disseram acreditar que as internações hospitalares podem atingir o pico em fevereiro ou março.

“Ainda pode ser um inverno horrível”, disse Gandhi. “No próximo mês, a vida vai ser muito difícil em escolas e hospitais.”

Bernd Bernd Debusmann Jr e Holly Honderich
Da BBC News em Washington





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