Em mais um capítulo da batalha entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que têm promovido ataques à Corte, o ministro Alexandre de Moraes determinou nesta sexta-feira (13/8) a prisão preventiva do ex-deputado federal e presidente nacional do PTB Roberto Jefferson.
Na decisão, Moraes afirma que uma série de elementos colocariam Jefferson como parte do núcleo político de uma organização criminosa que tem como objetivo “desestabilizar as instituições republicanas” e que vem sendo investigada pela Polícia Federal (PF) no chamado inquérito das “milícias digitais”.
Nesse sentido, a petição da PF que solicitou a prisão elenca uma série de entrevistas e postagens de Jefferson que “incitaram a prática de crimes” e “ofenderam a dignidade e o decoro de ministros do STF, senadores e integrantes de CPI da Covid-19″.
“Se sou ele (Bolsonaro), já teria fechado o Supremo”, disse Jefferson, por exemplo, em entrevista à rádio Jovem Pan, no final de julho.
Simpatizantes do ex-deputado reagiram nas redes sociais defendendo que suas falas são protegidas pela liberdade de expressão e classificando a decisão de Moraes de abusiva e autoritária.
Juristas ouvidos pela BBC News Brasil se dividem sobre a legalidade da prisão. Eles consideram que as manifestações de Jefferson podem sim configurar graves crimes, mas há controvérsia sobre se o ministro fundamentou adequadamente a necessidade da prisão preventiva – detenção que pode ser decretada mesmo antes de um processo criminal, caso o investigado esteja ameaçando a ordem pública, atrapalhando investigações ou tentando fugir.
Outro ponto que divide os especialistas é o fato de a prisão ter sido decretada sem pedido prévio da Procuradoria-Geral da República (PGR). Entenda a seguir os argumentos a favor e contra a prisão.
1) Fundamentação da prisão preventiva
Para uma pessoa ser detida antes de ser condenada em um processo criminal, o juiz deve apresentar elementos que justifiquem a prisão preventiva.
Em sua decisão, Moraes diz que a prisão de Jefferson é necessária para garantir a ordem pública e o adequado andamento da investigação devido aos “fortes indícios de materialidade e autoria” de crimes previstos no Código Penal, como calúnia, difamação, injúria, incitação ao crime, apologia ao crime ou criminoso, associação criminosa e denunciação caluniosa.
Ele cita ainda possíveis delitos previstos na Lei de Segurança Nacional, como “rentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, e também o potencial desrespeito à lei que prevê crimes de preconceito e racismo, como o ato de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Porém, na avaliação do professor de direito processual penal da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró, o ministro não explicou na sua decisão por que a realização desses crimes justificaria a prisão preventiva.
“Acho que está mal fundamentada. Embora ao longo da decisão haja clara referência à reiteração de condutas que possam constituir crimes – e crimes graves – na parte em que fundamenta a necessidade da prisão, limita-se a indicar quais crimes seriam estes. O STF tem aceito a prisão preventiva para a garantia da ordem pública, com a finalidade de evitar a reiteração delitiva (repetição dos crimes), o que poderia ter sido invocado nesse caso, mas não o foi”, disse à BBC News Brasil.
“As afirmações do Roberto Jefferson são horríveis, repugnantes, irresponsáveis e inadmissíveis, mas o devido processo legal tem que valer para todos, culpados ou inocentes, amigos ou inimigos. Senão, será a força bruta”, argumentou ainda.
Já o professor de direito penal da FGV Davi Tangerino considera que, ainda que a fundamentação da prisão preventiva tenha sido limitada, há elementos suficientes na decisão para justificar a detenção.
“Fundamento (para prendê-lo) há sim. Os fatos mostram indícios mais do que suficientes de crimes graves. Penso que o porquê de prender preventivamente deveria ter sido mais explicitado: concretamente, qual o risco de mantê-lo em liberdade? Mas, como um todo, a decisão para em pé”, argumentou Tangerino.
2) Ausência da PGR
Assim como o inquérito das Fake News, a investigação que apura a atuação de “milícias digitais” é alvo de controvérsia jurídica por ter sido iniciada em decisão direta do STF, sem que fosse solicitada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras – ou seja, sem a participação do Ministério Público, que é a instituição responsável por investigar e denunciar criminalmente no país, segundo a Constituição Federal.
No entanto, julgamento do STF de junho de 2020 considerou o inquérito das Fake News legal, abrindo precedente para essa outra investigação.
A avaliação foi que o Supremo pode abrir inquérito quando ataques criminosos são cometidos contra a própria Corte e seus membros, representando ameaças contra os Poderes instituídos, o Estado de Direito e a democracia.
No caso da prisão de Jefferson, o pedido partiu da PF e Moraes chegou a consultar a opinião da PGR, dando 24 horas para Aras se posicionar.
O procurador-geral, porém, só se manifestou depois do prazo, quando a prisão já havia sido decretada. Segundo nota divulgada pela PGR, seu entendimento foi “que a prisão representaria uma censura prévia à liberdade de expressão, o que é vedado pela Constituição Federal”.
“Em respeito ao sigilo legal, não serão disponibilizados detalhes do parecer, que foi contrário à medida cautelar, a qual atinge pessoa sem prerrogativa de foro junto aos tribunais superiores”, disse ainda a nota, em uma crítica ao fato de Jefferson estar sendo investigado no STF, e não na primeira instância judicial, como ocorre com as pessoas sem foro especial.
Na avaliação de Davi Tangerino, o fato de Jefferson ter praticado condutas contra o STF permite a Moraes decretar a prisão, mesmo sem ele ter foro privilegiado, seguindo o precedente do inquérito das Fake News.
Ele considera a prisão legal porque não partiu exclusivamente de Moraes, mas foi decretada após solicitação da Polícia Federal.
“Houve pedido da PF. Mais complicado, em tese, teria sido se a PGR tivesse se oposto, antes da prisão”, avalia o professor.
O professor da USP Gustavo Badaró, por sua vez, considera que a atuação da PGR seria indispensável para a legalidade da prisão. Ele ressalta que o artigo 282 do Código de Processo Penal estabelece que, na fase de investigação, o juiz não pode decretar a prisão de ofício, ou seja, sem um requerimento prévio.
“Embora algumas pessoas entendam que a mera representação da autoridade policial equivale a esse requerimento, a mim não aparece. Justamente por isso é que depois que a autoridade representa vai para o Ministério Público (se manifestar). E o Ministério Público pode concordar ou não com aquela representação”, afirma.
Para Badaró, a decisão de Moraes reflete o que tem sido entendido como uma postura omissa de Aras na função de investigar crimes cometidos por Bolsonaro e seus aliados. O procurador-geral da República é visto hoje por boa parte do meio jurídico como um aliado do presidente.
“A Justiça Criminal é uma disputa de poder, não aceita vácuo. Se o PGR não atua, o STF vai atuar de ofício. Mas daí não vale a lógica de que um erro justifica o outro”, diz Badaró.
“Até porque o problema de o juiz não poder decretar medida de ofício sem requerimento do órgão acusador é exatamente preservar a imparcialidade, para não colocá-lo numa posição de antecipar uma visão punitiva, quando o papel do juiz não é ser punitivista nem defensor, o papel dele é ser julgador”, reforça.
Mariana Schreiber – @marischreiber
Da BBC News Brasil em Brasília