Estranho rapaz era o Sabinaldo, a começar pelo nome. Desde que aprendeu as letras se colocou em tal posição que, por mais que estudasse nunca se achava suficiente. O conhecimento é assim mesmo, um balde sem fundo é nossa cabeça, enchê-la com as coisas do mundo não é fácil, talvez impossível.
Cresceu Sabinaldo num meio relativamente culto. Estudou advocacia, mas sua inclinação era para com a física, química e o que mais cheirasse ciência. O raciocínio lógico, apoiado em atenta leitura de Aristóteles, lhe era tão natural quanto é para a maioria as discussões sobre futebol.
No tempo do grupo de jovens as opiniões que emitia ficavam entre a admiração e a inveja dos colegas. Logo passou a ser visto como um chato. Chato é todo aquele que fala uma linguagem da qual discordamos ou que insistem em assuntos que nos aborrecem. Eram tempos antigos aqueles, e algumas moças desse grupo passaram a olhar para Sabinaldo como possiblidade de um bom marido. A carreira profissional só poderia prometer sucesso para alguém tão dedicado aos livros. Concursos com vencimentos rendosos não faltavam. Só lamentavam a ideia de ter de suportar alguém assim tão matematizado e lógico. E casamento era para toda vida.
Virgem ainda aos 28 apanhou-se certa noite com insônia. Insônia braba. Não entendia o motivo. A vida corria tranquila, os vencimentos estavam garantidos, carreira promissora, tudo estava em seu controle. Exceto por não saber a causa daquela insônia.
Imaginava mil situações para agradar aquela jovem de rosto diabolicamente angelical e corpo também. Sabinaldo não queria passar por bobo. Correu para os livros. Amar é: a descarga de certos hormônios e reações químicas no cérebro que dão uma sensação de contentamento. Feniletilamina, epinefrina, norepinefrina, dopamina, oxitocina, serotonina, endorfina. Enfim, de posse de tão preciso conhecimento sobre o que estava acontecendo em seu corpo, Sabinaldo pode justificar a causa da insônia e a presença permanente daquela imagem feminina, tudo não passava de reação química. De reação em reação, de química em química casou-se com ela. Teve filhos, claro. Deliciosa vida, com sensações novas que Sabinaldo jamais sonharia antes.
Traquinaldo e Baguncildo, seus filhos, faziam seu contentamento. Estava espantado em perceber que não se importava com os desassossegos que as crianças traziam com suas estripulias. E viu que isso era bom. Fez-se um novo dia em sua existência. Manteve o contato com os livros, nem seria louco para abandoná-los. Porém coisas novas haviam entrado em sua vida.
Outras ainda viriam, quando um dos filhos adoeceu gravemente e a medicina parecia insuficiente. Garrafadas, curandeirismo, pajelança, e muito mais haviam sido sugeridos ao casal. Sabinaldo que da ciência europeia sabia muitas coisas, mas sabia coisa alguma dessas outras muitas coisas, ficou reticente. Felizmente o menino melhorou graças a um novo remédio. Quis saber o que era. Descobriu o conhecimento indígena sobre ervas. Pesquisadores sisudos em seus laboratórios se dignaram visitar a floresta para pesquisar novas drogas. Deu-se que uma planta já velha conhecida da tribo, e foi esse conhecimento muito antigo que salvou a criança.
Esse micro conto pode servir a muitos propósitos, cada um escolha o seu. O fato é que nossos personagens envelheceram. O tempo, grande mestre, mostrava o rigor da ciência e a instabilidade da vida. ‘Nem tudo que a ciência não provou não existe’, pensava ele, sempre mais respeitoso para com aquela espécie de saber empírico. Na medida em que se destacava as pessoas deixavam de chamá-lo pelo título de doutor. Ele mesmo tirou de seu nome o título de DR. Sabinaldo das Quantas. Preferiu ser chamado apenas Sabinaldo, lembrando aliás que grandes nomes da ciência nunca são lembrados pelo doutoramento, são apenas: Lévi-Strauss, Sartre, Heidegger, Einstein. Se Einstein não é chamado de Dr. Albert Einstein, por que ele o seria?
Da ciência cultivada desde jovem agora somava sabedoria. Então veio a morte. Fim.