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Artigo: A culpa é do mordomo

Por Ivanor Luiz Guarnieri

culpa[dropcap]“E[/dropcap]ra uma vez no Reino Desencantado: um homem, uma mulher e dois cavalos. Seguiam os quatro rumo ao maravilhoso castelo, construído com recursos originados de ‘Sabe-se Deus Onde’. O Mordomo os convida para entrar, menos os cavalos, claro. O Senhor Fortuna os aguardava ansioso para pedir um favor. Regalam-se com vinho feito pela gente da Província. Desde séculos os Humildes trabalham para seus Senhores, e demonstravam estar contentes quanto a obedecer ordens.

Mas as coisas pareciam mudar no Reino Desencantado. O casal visitante perguntou ao dono do castelo se a mudança não era só uma impressão do Senhor Fortuna. ‘Não!’ respondeu ele. E argumentou que a infeliz ideia de sua Mãe em dar ao povo algo para se divertir parecia ter trazido um efeito nefasto. As pessoas abriram suas ideias para outras possibilidades, desde que a imprensa e a Máquina de Entretenimento entraram a mostrar coisas diferentes daquelas que os Humildes estavam habituados. ‘Uma vergonha, como vocês sabem. Há muito cuidamos para que não nos prejudique com escritos que nos desonrem, só porque somos nascidos ricos. Descuidamos, porém da Máquina de Entretenimento, essa traidora deveria ser só para divertir. Mas nossos serviçais têm visto coisas a mais do que apenas diversão. E agora querem justiça, querem que nós, os ‘Afortunados’ sejamos punidos por algum crime que supostamente tenhamos cometido. Chegam ao absurdo de dizer que, se eles são presos quando erram nós também deveríamos ser’.

O casal ouvia tudo curioso, observando aquele homenzarrão falar em tons que beiravam ora ao discurso inflamado, ora ao choramingo ante a situação para da qual se desconsolava. Quando finalmente o poderoso dono do Castelo deu uma pequena pausa para molhar a palavra com o consolador whisky, o casal tomou coragem para perguntar: porque afinal eles estavam ali e que favor tão excelso Senhor queria deles?

‘Muito simples’, disse ele, ‘Como sabeis tenho um filho que é minha esperança. Vejo nele as possibilidades de continuar nossa família mandando e vivendo bem. Mas ele tem dado provas de que não está a altura de mandar nos outros. Pelo contrário, desde que se apaixonou por uma Humilde parece ter ficado transtornado. Ele é menor ainda, e não posso dar permissão para o casamento, ainda mais com alguém fora de nossa distinta classe social. Ele não se conforma. Outro dia tomou a charrete e saiu em disparada, quando o sol se punha, tentando chegar ‘Sabe Deus Onde’. Como tem pouca ou nenhuma instrução sobre guiar charretes acabou batendo em uma menina, dessas criancinhas que ficam brincando por aí. O fato é grave, como sabeis. Se fosse mantido certo sigilo sobre o ocorrido tudo passaria. Mas a tal ‘Máquina de Entretenimento’, na fome que tem em ser vista, espalhou a notícia e agora querem o culpado pelo crime.

‘E o que temos nós com isso’, perguntou o casal.

‘Vou ser objetivo’, disse o Senhor Fortuna. Vocês tem um menino da idade do meu, e como estão com algumas dificuldades financeiras, eu darei tudo que vocês precisam, para o resto da vida, se vosso filho…

‘Nem pensar, esbravejou a Mãe. Nunca meu filho assumiria um crime que não cometeu. Mesmo que o Senhor nos garanta os melhores advogados do mundo. Não viu o que aconteceu com aquele rapaz recentemente? Tinha emprego, moradia fixa, nunca havia cometido outro crime. Era traído pela namorada, a amiga dela ligou para ele para fustigá-lo. Ele foi até a cabana da moça e, cego de ódio a matou. A ‘Máquina de Entretenimento’ estava lá, mostrando tudo, até os detalhes do julgamento final.

Ivanor-ArtigosMesmo com criminosos bem piores, de vários assassinatos que andam livres por aí, esse rapaz, porém, pegou pena máxima em tudo. Me diga, Senhor Fortuna, o Senhor permitira que isso ocorresse com seu filho? Ser julgado duas vezes, pela Justiça e pela Máquina de Entretenimento?’ O marido só ouvia. ‘Vamos querido, já ouvi bastante’.

Mais tarde o Senhor Fortuna, ouvindo seus advogados, ficou sabendo que o filho Menor poderia se apresentar, mas sem que fosse de todo culpado, pois, segundo as leis criadas por eles próprios caberia a um adulto a responsabilidade. ‘Já sei’, pensou o Senhor fortuna, ‘direi que a culpa é do mordomo, pois foi ele quem entregou as rédeas da charrete para meu filho. Ele é o “culpado’”.

E continuava a vida no Reino Desencantado, muito desencantado.




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