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Artigo: A lenda e nós

Por Ivanor Luiz Guarnieri

Charlemagne_and_Pope_Adrian_I[dropcap]O[/dropcap] escritor italiano Ítalo Calvino conta uma antiga lenda na qual o imperador Carlos Magno, que viveu na Europa do século nove, teria se apaixonado ao extremo por uma donzela do seu império, na Alemanha. O que já era constrangedor tonou-se escandaloso quando a jovem morreu e o poderoso Carlos levou o cadáver da moça para seus aposentos, desejoso que estava em vê-lo e com ele permanecer. Naquele tempo o sentido religioso era bem acentuado levando alguns a ver bruxas, amuletos e sortilégios que pareciam estar em todo lugar; suspeitava-se que havia algum feitiço naquela jovem agora defunta. O arcebispo Turpino, enfiando os dedos na gélida boca da morta retirou de debaixo da língua um anel e o guardou consigo. O que se seguiu foi ainda mais estranho, o alto dignitário da Igreja se viu em apuros, pois era procurado por Carlos Magno que por ele se apaixonou. Para se livrar dessa situação incômoda o arcebispo jogou o anel nas águas do Constança. A partir de então o imperador não queria mais sair das margens daquele lago.

Outra história é a que ouvi de caçadores, quando eu era ainda moço. Segundo o que conversavam, para caçar lebre pouca coisa era tão proveitosa quanto uma luz bem forte. Diziam entre si que esse animal ficava estranhamente atraído pela luz forte do Jeep, pois paravam no meio da estrada e acabavam se deixando matar. Portanto a luz que ilumina o mato à noite é também sentença de morte nas mãos dos caçadores. Como em prosa de caçadores eles costumam exagerar, não sei se isso é verdade, mas relato o que ouvi, pois serve aos propósitos deste texto.

Nas duas histórias o olhar é o sentido mais bem destacado. Carlos Magno contemplando o corpo da jovem e depois obcecado olhando o lago. A lebre, por seu turno, presa pelo olhar que não consegue desviar da luz.

Lembrei-me disso a propósito do modo como vivemos e do como agimos em relação a muitas coisas ao nosso redor. Do conjunto incomensurável de objetos, qual é o anel mágico que nos perturba, encanta e leva a perder o sentido do bom senso? Poderia ser dito do dinheiro, pois com seus poderes encantatórios de compra, não poucos deixam os pais ao abandono, espezinham funcionários, matam para roubá-lo, faltam com a palavra e alguns podem, com a mesma sem-cerimônia ofender o Criador usando da Palavra para enriquecer. Mas o dinheiro, que em si não é nem bom nem mau, não é também nem o anel nem o feitiço que poderia haver nele.

Quem sabe então o anel e a luz ofuscante esteja na profusão de programas apelativos, que colocam a riqueza como a única busca válida, ou expõe o sexo, o oferecimento de prazeres gratuitos e fúteis, o apelo à gastança, indicando que ‘ser é ter e quem não tem nada é’. É notável como encaminham as coisas para a transformação: do conforto em luxo, do reconhecimento público transmutado em poder para mandar nos outros, da admiração sadia em inveja sobre a condição alheia e sugerindo ainda que se deve desfrutar da vida sem pensar nos resultados futuros.

É claro que a aceitação das ofertas capazes de levar a viver uma vida alienada, que não é da própria pessoa, depende de quão ‘lebre’ seja o apreciador. Se não consegue desviar o olhar da encantadora luz o problema está mais nele do que nas coisas. Muitos animais fogem do perigo e o anel encantado só tinha poderes sobre Carlos Magno. Disso resulta que as escolhas dependem sim do que é ofertado, mas em grande medida daquilo que o escolhedor toma para si.

Nesses tempos de Quaresma, até lendas antigas como a de Carlos Magno e causos de caçadores podem ser interessantes para refletir sobre nossa condição humana, levando-nos a pensar sobre nós mesmos.

Ivanor-ArtigosUma luz forte e segura, como a Bíblia pode mostrar caminhos e ser esclarecedora, mas mal usada gera fanatismos e conduz a morte, separando e segregando pessoas. O dinheiro constrói casas, permite financiar remédios e ajudar necessitados, mas também por causa dele são feitas as guerras. Tudo depende das escolhas feitas, de conformidade com o interesse de cada um. A luz e o anel estão dentro do homem.





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