Era o ano de 1888 e a situação estava difícil para os homens do trabalho.
[dropcap]O[/dropcap] filósofo inglês John Locke (1632-1704) argumenta em seu livro “Segundo tratado sobre o governo” que “embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa […]”. Argumenta ainda que o corpo é de algum modo, a primeira propriedade. Então cada um dispõe de seu corpo para as diferentes tarefas e que aquilo que colhe com o trabalho das próprias mãos é seu.
A difícil relação entre capital e trabalho, ou se preferir entre patrões e empregados, se deve à dificuldade em precisar o valor do trabalho, notadamente o alheio. Se alguém reclama que as pessoas não querem mais trabalhar, comece a pensar nas dificuldades em conseguir comprar alimento para repor as energias gastas em alguma atividade. Esperar que alguém tenha condições de trabalhar o dia todo por apenas R$ 10,00, por exemplo, é falta de consciência mínima sobre matemática. Isso mesmo, com R$ 10,00 não dá para repor as energias gastas no trabalho, por isso alguns se recusam a fazer o serviço por tão pouco.
De tal sorte que um dos indicativos acerca do valor a ser pago pelo serviço executado nunca pode ser menor do que o mínimo necessário para que o trabalhador consiga repor as energias gastas. O nome restaurante vem justamente de restaurar as forças. Mas não é só se manter vivo comendo, é preciso mais, é preciso viver melhor, com conforto.
O economista alemão Karl Marx afirma que o valor das mercadorias decorre das horas de trabalho socialmente gastas para produzi-las. Assim um sapato custa bem menos do que uma casa, pois na casa existem mais horas de trabalho. Ou seja, é preciso calcular as horas de trabalho de quem fez os tijolos, de quem fabricou o cimento, de quem extraiu a areia; enfim, de todas as horas necessárias na fabricação das centenas de materiais utilizados numa casa para saber o quanto ela vale.
Mas há uma espécie de mercadoria muito especial que também está no mercado. Essa mercadoria é a Força de Trabalho. Ora, a força de trabalho é justamente a capacidade do corpo e da inteligência que o trabalhador tem para produzir mercadorias a partir de sua atividade laboral. O trabalhador não tendo as máquinas, ferramentas e fábricas vende sua mão de obra (força de trabalho) para o capitalista que, sendo dono dos meios de produção contrata-o para executar o serviço de fabricação de mercadorias.
Se as mercadorias têm determinado valor conforme as horas gastas para produzi-las, então a mercadoria Força de Trabalho também pode ser medida por esse mesmo critério de valor. Exemplificando pode ser dito que a mão de obra de um trabalhador braçal, necessária para cortar a grama do jardim tem muito menos horas de trabalho social do que a mão de obra de um médico, cuja preparação demandou muito tempo de estudo, dele próprio e de seus professores. Somem-se as horas de estudo e ensino dos diferentes professores das faculdades de medicina, mais as horas de estudo e leitura, de residência médica do estudante de medicina. Acrescente que depois de formado é preciso continuar estudando, participando de congressos na área de atuação, e se pode ter uma ideia do valor do trabalho médico, que alguns, erroneamente julgam que é cara.
O paciente que é atendido no consultório pode não se dar conta de quantas horas o médico gastou em leitura e preparação, e, não se dando conta disso pode reclamar do valor da consulta. Isso se deve, pois quem não é daquela profissão tende a medir-se com ela. Nesse sentido, uma pessoa que não tem preparo em termos de estudo, e vive com dois salários mínimos mensais julga exorbitante o que ganham os médicos. Fazem pior, falando com certa inveja dos que conseguem pelo trabalho, alguma riqueza, como se fosse pecado ser proprietário de bens imóveis e médico ao mesmo tempo.
Ora, bons médicos todos querem e para isso, eles precisam continuar estudando. Aliás, isso não é só com esta área de trabalho. Os professores também deveriam ter condições e vontade de continuar na atividade que não acaba nunca, que é o atualizar-se e estudar para sempre. Tanto a boa qualidade da consulta em clínica, quanto da aula, no caso desses dois profissionais, depende de muitas horas de leitura e estudo. Os reclamadores de plantão se habilitam?
Agora vem o governo da presidente Dilma lançar a ideia de “serviço civil obrigatório”, o que forçaria os médicos a se formarem a partir de 2015 a trabalhar para o governo. É preciso lembrar que trabalho compulsório beira a escravidão. O médico recém-formado deve ter o direito de escolher onde quer trabalhar e para quem quer trabalhar. O risco da interferência sobre outras categorias é grande. E se o governo cobrar dos professores que se formam obrigando-os a mudar para escolas nas quais não querem trabalhar, tudo bem?
Tanto o médico quanto o professor devem ter assegurado o direito de escolha acerca do que querem fazer com seu trabalho. Essas duas categorias profissionais podem ser atraídas para os lugares onde o governo quer que eles estejam desde que além da boa remuneração, haja também condições de trabalho. De nada vale contratar cirurgiões se não há centro cirúrgico aparelhado e com materiais. Além disso, os hospitais precisam contar com corpo de enfermeiros capazes de dar suporte ao trabalho médico.
É extremamente desagradável colocar preço no trabalho alheio. É desconfortável dizer o que os médicos devem ou não fazer, do mesmo modo que é desagradável quando alguém se propõe a dizer o que devemos fazer como professores. Acima de tudo é indispensável que os próprios médicos digam o pensam, afinal é o corpo deles e a inteligência deles que está em realizando o trabalho de cuidado com a saúde.
Quanto aos médicos cubanos a questão geralmente aparece desfocada, pois não é o fato de serem cubanos que importa mais, mas sim a capacidade e preparo para exercer a medicina que conta. E, pelo visto, devem ter muito preparo acadêmico e técnico para trabalhar nas condições que o governo brasileiro oferece aos que cuidam de nossa saúde. Que venham os cubanos, mas que lhes seja assegurado também o direito de pensar e cuidar de si mesmos, sem as exigências do governo que parece querer que os cidadãos da medicina façam compulsoriamente seu trabalho.
Que o ano de 1888, no qual foi assinada a Lei Áurea seja lembrado para que os trabalhadores de todos os níveis sejam livres para realizar seu trabalho, dentro da lei, mas sem serem forçados a isso. É direito de a pessoa humana usufruir de seu trabalho livremente exercido.
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